O marco da humilde capela

O marco da humilde capela

legenda: Escritura de 1862 registra o ato de fundação de Avaré

Fonte da Foto: Arquivo Gesiel Jr.

Gesiel Júnior

     Em meados do século dezenove, a primitiva povoação da Capela do Major, cujo nome intermediário foi Rio Novo e atualmente é identificada como a Estância Turística de Avaré, surge no papel oficialmente com a doação de uma gleba de terras oferecida a Nossa Senhora das Dores, conforme prática corriqueira desse tempo.

     Lavrada há exatos 149 anos, em 15 de maio de 1862, essa escritura pode ser considerada como o ato fundacional de Avaré.

     A propósito, o primeiro relato sobre as origens da cidade é de autoria do jornalista e pesquisador Manoel Marcellino de Souza Franco, no trabalho intitulado “Memória Histórica”, publicação de 1909. Assim o célebre Maneco Dionísio faz seus registros sobre o tema, hoje controverso:

“Com dois distritos de paz, Avaré, sede do município, e da comarca, com três municípios, foi fundada pelos sertanejos major Victoriano de Souza Rocha, sua mulher, e Domiciano de Sant’Anna e sua mulher, que, por escritura pública de 15 de maio de 1862, lavrada nas notas do tabelião de Botucatu, sede do distrito, município e termo, doaram o terreno necessário, correspondente a 27 hectares, situados nas margens do ribeiro denominado Lageado, afluente esquerdo do Rio Novo, para patrimônio a Capela de Nossa Senhora das Dores com a denominação de Rio Novo, mediante pagamento de fôro pelos ocupantes para a manutenção do culto religioso da futura Matriz, sendo esse terreno aumentado em mais 142,400 hectares, em virtude da escritura de retificação, lavrada nas notas do mesmo tabelião, em 9 de janeiro de 1869, para a legalização canônica do patrimônio, que foi julgado valido pela Câmara Eclesiástica de S. Paulo.

         Concorreram para essa fundação, com serviços e prestígio pessoal, José Antonio do Amaral, Generoso Teixeira, Antônio Bento Alves, Jacintho Gomes de Moraes, Dionísio José Franco e outros, cujos nomes são ignorados, os quais deixaram numerosos descendentes”.

         Fundadoras –No relato de Maneco e no corpo das escrituras de 1862 e de 1869 dois nomes aparecem implicitamente também no processo de doação das terras formadoras do Patrimônio do Rio Novo: os das mulheres dos fundadores, ambas batizadas como Gertrudes.

         Tem procedência, portanto, a afirmação do pesquisador José Leandro Franzolin, o qual considera como fundadoras de Avaré, dona Gertrudes Cardoso de Oliveira e dona Gertrudes Maria da Luz, casadas, respectivamente, com o major Vitoriano e com o alferes Domiciano José de Sant’Ana.

         Inflamadas pela mesma fé, as duas mulheres contribuíram assim para que a cidade, de fato, tivesse no dizer do poeta, no seu marco original uma humilde capela.

Entre lendas e fendas

        Inexiste documentação segura comprovando tenha sido a antiga Rio Novo fundada em 1861. Romanceada por uns, questionada por outros, a origem de Avaré continua nublada pela falta de uma versão convincente, já que os informes do capitão Tito Corrêa de Melo, embora até admitidos como verossímeis, não convenceram o memorialista Jango Pires, autor do primeiro livro sobre a história avareense.

       “Deixo de transcrever tais dados porque o alferes Manoel Marcellino de Souza Franco, meticuloso como foi e sabia fazer as cousas completas, nunca fez referências a esse fato, mormente sendo ele muito religioso”, destacou Jango ao referir-se ao suposto milagre narrado por outros historiadores a partir do relato feito pela boca do capitão Tito, um dos sertanistas pioneiros de Botucatu.

         O respeitado historiador Aluísio de Almeida, reproduzindo a narrativa do capitão Tito, diz que “em 1860 a mulata Chica Valenciana, forra, parteira no Rio Novo, deu por morta a esposa do Major Vitoriano. Este prometeu uma capela a Nossa Senhora das Dores. A criança nasceu. Em 1861, novo parto, nova promessa que, enfim, foi cumprida. Dona Sinhazinha pode entrar na capelinha de pau-a-pique, levando a sua imagem provavelmente tirada do oratório familiar”.

         O que se põe em dúvida, a rigor, não é a suposta intervenção divina feita a partir da oração do fundador à Virgem Dolorosa, mas se o fato teria ocorrido mesmo na data mencionada uma vez que nesse tempo o major teria 75 anos de idade, segundo a escritura de doação de terras ao Patrimônio de Nossa Senhora das Dores, lavrada em 1869, documento esse arquivado na Cúria Metropolitana de Botucatu.

         Diz ali que Vitoriano nasceu em Bragança no ano de 1786. Sua mulher, Gertrudes Cardoso de Oliveira, a dona Sinhazinha, em 1796. Ambos teriam idade avançada para se admitir seguidas gravidezes em anos e situações desfavoráveis. Não teria o episódio transcorrido pelos menos 25 anos antes?

         A propósito, o milagre motivador da construção da capela votiva também jamais foi comentado por outros pioneiros do lugar, como José Magaldi e José Vicente do Amaral Leite.

         Lendário ou não, o episódio foi consagrado em verso e prosa. O próprio Maneco, nosso primeiro memorialista, nunca a isso se referiu, embora fosse devoto de Nossa Senhora das Dores.

         Declaração de punho próprio feita pelo major em 1855, na qual partilhava suas terras com o filho Chrispim, extraída dos arquivos do Judiciário de Avaré, é fator que derruba o ano de 1861 como sendo o da fundação da cidade, considerando que os desbravadores certamente aqui chegaram bem antes do que se pensa.

         Outro documento expedido pela mesma Cúria de Botucatu – a certidão de óbito do major – diz que ele já completara 100 anos quando morreu. As datas, porém, ao apontarem para a longevidade do fundador, mostram discrepância com os dados constantes da escritura de 1869 em que ele teria 83 anos. Difícil é a obtenção de registros precisos quando se depara com informações conflitantes como esta:

         “Aos 28 de março de 1880, neste districto, falleceu o Major Victoriano de Sousa Rocha, de cem annos, viúvo de Gertrudes Cardoso de Oliveira, o qual depois de receber os Santos Sacramentos da Penitencia e Extrema-Uncção, foi solennemente encommendado, e sepultado no Cemiterio desta Parochia. Para constar mandei lavrar o presente assento que sómente assigno. Vigario Pe. Antonio Gomes Xavier”.

         O assunto se põe como fenda aberta na crônica histórica avareense. Para fechar tamanha lacuna, exige-se séria reflexão na busca de uma honesta e condizente versão dos fatos.

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  • Do livro “Avaré em memória viva”, vol. II,

de Gesiel Júnior, Editora Gril, 2011

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